Identidade e Pós-modernidade
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
Stuart
Hall
Livro na íntegra (totalmente escaneado)
(Do livro: A identidade
cultural na pós-modernidade, DP&A Editora, 1ª edição em 1992, Rio de
Janeiro, 11ª edição em 2006, 102 páginas, tradução: tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro)
1. A IDENTIDADE EM QUESTÃO
A questão da identidade está sendo
extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte:
as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão
em declino, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada "crise
de identidade" é vista como parte de um processo mais amplo de mudança,
que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas
e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social.
O propósito deste livro é explorar algumas
das questões sobre a identidade cultural na modernidade tardia e avaliar se existe
uma "crise de identidade", em que consiste essa crise e em que
direção ela está indo. O livro se volta para questões como: Que pretendemos
dizer com "crise de identidade"? Que acontecimentos recentes nas
sociedades modernas precipitaram essa crise? Que formas ela toma? Quais são
suas conseqüências potenciais? A primeira parte do livro (caps. 1-2) lida com
mudanças nos conceitos de identidade e de sujeito. A segunda parte (caps. 3-6)
desenvolve esse argumento com relação a identidades culturais — aqueles
aspectos de nossas identidades que surgem de nosso "pertencimento" a
culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo,
nacionais.
Este livro é escrito a partir de urna
posição basicamente simpática à afirmação de que as identidades modernas estão
sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou fragmentadas. Seu
propósito é o de explorar esta afirmação, ver o que ela implica, qualificá-la e
discutir quais podem ser suas prováveis conseqüências. Ao desenvolver o
argumento, introduzo certas complexidades e examino alguns aspectos
contraditórios que a noção de "descentração", em sua forma mais
simplificada, desconsidera.
Conseqüentemente, as formulações deste livro
são provisórias e abertas à contestação. A opinião dentro da comunidade sociológica
está ainda profundamente dividida quanto a esses assuntos. As tendências são
demasiadamente recentes e ambíguas. O próprio conceito com o qual estamos
lidando, "identidade", é demasiadamente complexo, muito pouco
desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para
ser definitivamente posto à prova. Como ocorre com muitos outros fenômenos
sociais, é impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos
seguros sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo apresentadas.
Deve-se ter isso em mente ao se ler o restante do livro.
Para aqueles/as teóricos/as que acreditam
que as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se
desenvolve da seguinte forma. Um tipo diferente de mudança estrutural está
transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está
fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça
e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações
como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas
identidades pessoais, abalando a idéia que ternos de nós próprios como sujeitos
integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada,
algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo
deslocamento—descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e
cultural quanto de si mesmos — constitui uma "crise de identidade"
para o indivíduo. Como observa o crítico cultural Kobena Mercer, "a
identidade somente se torna urna questão quando está em crise, quando algo que
se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e
da incerteza" (Mercer, 1990, p. 43).
Esses processos de mudança, tomados em
conjunto, representam um processo de transformação tão fundamental e abrangente
que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo
transformada. Este livro acrescenta uma nova dimensão a esse argumento: a
afirmação de que naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso mundo
pós-moderno, nós somos também "pós" relativamente a qualquer
concepção essencialista ou fixa de identidade—algo que, desde o Iluminismo, se
supõe definir o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar nossa
existência como sujeitos humanos. A fim de explorar essa afirmação, devo
examinar primeiramente as definições de identidade e o caráter da mudança na
modernidade tardia.
Três concepções de identidade
Para os propósitos desta exposição,
distinguirei três concepções muito diferentes de identidade, a saber, as
concepções de identidade do:
a) sujeito do Iluminismo,
b) sujeito sociológico e c) sujeito
pós-moderno.
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa
concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado,
dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo
"centro" consistia num núcleo interior, que pela primeira vez quando
o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo — continuo ou "idêntico" a ele — ao longo da
existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de urna
pessoa. Direi mais sobre isto em seguida, mas pode-se ver que essa era uma
concepção muito "individualista" do sujeito e de sua identidade (na
verdade, a identidade dele: já que o sujeito do Iluminismo era usualmente
descrito como masculino).
A noção de sujeito sociológico refletia a
crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo
interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na
relação com "outras pessoas importantes para ele", que mediavam para
o sujeito os valores, sentidos e símbolos — a cultura — dos mundos que ele/ela
habitava. G.H. Mead, C.H. Cooley e os interacionistas simbólicos são as
figuras-chave na sociologia que elaboraram esta concepção
"interativa" da identidade e do eu. De acordo com essa visão, que se
tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na
"interação" entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo
ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais "exteriores"
e as identidades que esses mundos oferecem.
A identidade, nessa concepção sociológica,
preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior"— entre
o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós
próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos
seus significados e valores, tornando- os "parte de nós", contribui
para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que
ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para
usar uma metáfora médica, "sutura") o sujeito à estrutura. Estabiliza
tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente mais unificados e predizíveis.
Argumenta-se, entretanto, que são exatamente
essas coisas que agora estão "mudando". O sujeito, previamente vivido
como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;
composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não- resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que
compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa
conformidade subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura,
estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e
institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos
projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável
e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno,
conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade torna-se uma "celebração móvel": formada transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). E definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes
em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um
"eu" coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando
em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde
o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre
nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao
invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada unia das quais
poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente.
Deve-se ter em mente que as três concepções
de sujeito acima são, em alguma medida, simplificações. No desenvolvimento do
argumento, elas se tornarão mais complexas e qualificadas. Não obstante, elas
se prestam como pontos de apoio para desenvolver o argumento central deste
livro.
O caráter da mudança na modernidade tardia
Um outro aspecto desta questão da identidade
está relacionado ao caráter da mudança na modernidade tardia; em particular, ao
processo de mudança conhecido como "globalização" e seu impacto sobre
a identidade cultural.
Em essência, o argumento é que a mudança na
modernidade tardia tem um caráter muito específico. Como Marx disse sobre a
modernidade:
é o permanente revolucionar
da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e
o movimento eternos ... Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo
de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações
recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se
desmancha no ar... (Marx e Engels, 1973, p. 70).
As sociedades modernas são, portanto, por
definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente. Esta é a
principal distinção entre as sociedades "tradicionais" e as "modernas".
Anthony Giddens argumenta que:
nas sociedades
tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm
e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o
tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na
continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são
estruturados por práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990, pp. 37-8).
A modernidade, em contraste, não é definida
apenas como a experiência de convivência com a mudança rápida, abrangente e
contínua, mas é uma forma altamente reflexiva de vida, na qual:
as práticas sociais são
constantemente examinadas e reformadas à luz das informações recebidas sobre
aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter
(ibid., pp. 37-8).
Giddens cita, em particular, o ritmo e o
alcance da mudança — "à medida em que áreas diferentes do globo são postas
em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem
virtualmente toda a superfície da terra" — e a natureza das instituições
modernas (Giddens, 1990, p. 6). Essas últimas ou são radicalmente novas, em
comparação com as sociedades tradicionais (por exemplo, o estado-nação ou a
mercantilização de produtos e o trabalho assalariado), ou têm uma enganosa
continuidade com as formas anteriores (por exemplo, a cidade), mas são
organizadas em torno de princípios bastante diferentes. Mais importantes são as
transformações do tempo e do espaço e o que ele chama de "desalojamento do
sistema social" — a "extração" das relações sociais dos
contextos locais de interação e sua reestruturação ao longo de
escalas indefinidas de espaço-tempo"
(ibid., p. 21). Veremos todos esses temas mais adiante. Entretanto, o ponto
geral que gostaria de enfatizar é o das descontinuidades
Os modos de vida colocados
em ação pela modernidade nos livraram, de tuna forma bastante inédita, de todos
os tipos tradicionais de ordem social. Tanto em extensão, quanto em
intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do
que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No plano da
extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que
cobrem o globo; cm termos de intensidade, elas alteraram algumas das
características mais íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana (Giddens,
1990, p. 21).
David Harvey fala da modernidade como
implicando não apenas "um rompimento impiedoso com toda e qualquer
condição precedente", mas como "caracterizada por um processo sem-fim
de rupturas e fragmentações internas no seu próprio interior" (1989, p.
12). Ernest Laclau (1990) usa o conceito de "deslocamento". Uma
estrutura deslocada é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por
outro, mas por "uma pluralidade de centros de poder". As sociedades
modernas, argumenta Laclau, não têm nenhum centro, nenhum princípio articulador
ou organizador único e não se desenvolvem de acordo com o desdobramento de uma
única "causa" ou "lei".
A sociedade não é, como os sociólogos
pensaram imitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade,
produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o
desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está constantemente
sendo "descentrada" ou deslocada por forças fora de si mesma.
As sociedades da modernidade tardia,
argumenta ele, são caracterizadas pela "diferença"; elas são atravessadas
por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem urna variedade de
diferentes "posições de sujeito" — isto é, identidades — para os
indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas
são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob
certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. Mas essa articulação é
sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta. Sem isso, argumenta
Laclau, não haveria nenhuma história.
Esta é uma concepção de identidade muito
diferente e muito mais perturbadora e provisória do que as duas anteriores.
Entretanto, argumenta Laclau, isso não deveria nos desencorajar: o deslocamento
tem características positivas. Ele desarticula as identidades estáveis do
passado, mas também abre a possibilidade de novas articulações: a criação de
novas identidades, a produção de novos sujeitos e o que ele chama de
"recomposição da estrutura em torno de pontos nodais particulares de
articulação" (Laclau, 1990, p. 40).
Giddens, Harvey e Laclau oferecem leituras
um tanto diferentes da natureza da mudança do mundo pós-moderno, nas suas
ênfases na descontinuidade, na fragmentação, na ruptura e no deslocamento
contêm uma linha comum. Devemos ter isso em mente quando discutirmos o impacto
da mudança contemporânea conhecida como "globalização".
O que está em jogo na questão das identidades?
Até aqui os argumentos parecem bastante
abstratos. Para dar alguma idéia de como eles se aplicam a uma situação
concreta e do que está "em jogo" nessas contestadas definições de identidade
e mudança, vamos tomar um exemplo que ilustra as conseqüências políticas da
fragmentação ou "pluralização" de identidades.
Em 1991, o então presidente americano, Bush,
ansioso por restaurar uma maioria conservadora na Suprema Corte americana,
encaminhou a indicação de Clarence Thomas, um juiz negro de visões políticas
conservadoras.
No julgamento de Bush, os eleitores brancos
(que podiam ter preconceitos em relação a um juiz negro) provavelmente apoiaram
Thomas porque ele era conservador em termos da legislação de igualdade de
direitos, e os eleitores negros (que apóiam políticas liberais em questões de
raça) apoiariam Thomas porque ele era negro. Em síntese, o presidente estava
"jogando o jogo das identidades".
Durante as "audiências" em torno
da indicação, no Senado, o juiz Thomas foi acusado de assédio sexual por uma
mulher negra, Anita Hill, uma ex-colega de Thomas. As audiências causaram um
escândalo público e polarizaram a sociedade americana. Alguns negros apoiaram
Thomas, baseados na questão da raça; outros se opuseram a ele, tomando como
base a questão sexual. As mulheres negras estavam divididas, dependendo de qual
identidade prevalecia: sua identidade como negra ou sua identidade como mulher.
Os homens negros também estavam divididos, dependendo de qual fator prevalecia:
seu sexismo ou seu liberalismo. Os homens brancos estavam divididos,
dependendo, não apenas de sua política, mas da forma como eles se identificavam
com respeito ao racismo e ao sexismo. As mulheres conservadoras brancas
apoiavam Thomas, não apenas com base em sua inclinação política, mas também por
causa de sua oposição ao feminismo. As feministas brancas, que freqüentemente
tinham posições mais progressistas na questão da raça, se opunham a Thomas
tendo como base a questão sexual. E, uma vez que o juiz Thomas era um membro da
elite judiciária e Anita Hill, na época do alegado incidente, uma funcionária
subalterna, estavam em jogo, nesses argumentos, também questões de classe
social.
A questão da culpa ou da inocência do juiz
Thomas não está em discussão aqui; o que está em discussão é o "jogo de
identidades" e suas conseqüências políticas. Consideremos os seguintes
elementos:
- As identidades eram contraditórias. Elas se cruzavam ou se
"deslocavam" mutuamente
- As contradições atuavam tanto fora, na sociedade, atravessando
grupos políticos estabelecidos, quanto "dentro" da cabeça de
cada indivíduo.
- Nenhuma identidade singular — por exemplo, de classe social — podia
alinhar todas as diferentes identidades com uma "identidade
mestra" única, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura,
basear uma política. As pessoas não identificam mais seus interesses
sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como
um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual
todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas
possam ser reconciliadas e representadas.
- De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são
fraturadas dessa forma por identificações rivais e deslocantes — advindas,
especialmente, da erosão da "identidade mestra" da classe e da
emergência de novas identidades, pertencentes à nova base política
definida pelos novos movimentos sociais: o feminismo, as lutas negras, os
movimentos de libertação nacional, os movimentos antinucleares e
ecológicos (Mercer, 1990).
- Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito
é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode
ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às
vezes, descrito como constituindo uma mudança de urna política de
identidade (de classe) para urna política de diferença.
Posso agora esquematizar, de forma breve, o
restante do livro. Em primeiro lugar, vou examinar, de uma forma um pouco mais
profunda, como o conceito de identidade mudou: do conceito ligado ao sujeito do
Iluminismo para o conceito sociológico e, depois, para o do sujeito "pós-moderno".
Em seguida, o livro explorará aquele aspecto da identidade cultural moderna que
é formado através do pertencimento a uma cultura nacional e como os processos
de mudança — uma mudança que efetua um deslocamento — compreendidos no conceito
de "globalização" estão afetando isso.
2. NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
Neste capítulo farei um esboço da descrição,
feita por alguns teóricos contemporâneos, das principais mudanças na forma pela
qual o sujeito e a identidade são conceptualizados no pensamento moderno. Meu
objetivo é traçar os estágios através dos quais uma versão particular do
"sujeito humano" — com certas capacidades humanas fixas e um
sentimento estável de sua própria identidade e lugar na ordem das coisas —
emergiu pela primeira vez na idade moderna; como ele se tornou "centrado",
nos discursos e práticas que moldaram as sociedades modernas; como adquiriu uma
definição mais sociológica ou interativa; e como ele está sendo
"descentrado" na modernidade tardia. O foco principal deste capítulo
é conceitual, centrando-se em concepções mutantes do sujeito humano, visto como
uma figura discursiva, cuja forma unificada e identidade racional eram
pressupostas tanto pelos discursos do pensamento moderno quanto pelos processos
que moldaram a modernidade, sendo-lhes essenciais.
Tentar mapear a história da noção de sujeito
moderno é um exercício extremamente difícil. A idéia de que as identidades eram
plenamente unificadas e coerentes e que agora se tornaram totalmente deslocadas
é urna forma altamente simplista de contar a estória do sujeito moderno. Eu a
adoto aqui como um dispositivo que tem o propósito exclusivo de uma exposição
conveniente. Mesmo aqueles que subscrevem inteiramente a noção de um
descentramento da identidade não a sustentariam nessa forma simplificada.
Deve-se ter essa qualificação em mente ao ler este capítulo. Entretanto, esta
formulação simples tem a vantagem de me possibilitar (no breve espaço deste
livro) esboçar um quadro aproximado de corno, de acordo com os proponentes da
visão do descentramento, a conceptualização do sujeito moderno mudou em três
pontos estratégicos, durante a modernidade. Essas mudanças sublinham a
afirmação básica de que as conceptualizações do sujeito mudam e, portanto, têm
uma história. Uma vez que o sujeito moderno emergiu num momento particular (seu
"nascimento") e tem uma história, segue-se que ele também pode mudar
e, de fato, sob certas circunstâncias, podemos mesmo contemplar sua
"morte".
É agora um lugar-comum dizer que a época
moderna fez surgir uma forma nova e decisiva de individualismo, no centro da
qual erigiu-se uma nova concepção do sujeito individual e sua identidade. Isto
não significa que nos tempos pré- modernos as pessoas não eram indivíduos mas
que a individualidade era tanto "vivida" quanto
"conceptualizada" de forma diferente. As transformações associadas à
modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas
estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas; não
estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. O status, a classificação
e a posição de uma pessoa na "grande cadeia do ser" — a ordem secular
e divina das coisas —predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa
fosse um indivíduo soberano. O nascimento do "indivíduo soberano",
entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII,
representou uma ruptura importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi
o motor que colocou todo o sistema social da "modernidade" em
movimento.
Raymond Williams observa que a história
moderna do sujeito individual reúne dois significados distintos: por um lado, o
sujeito é "indivisível" — uma entidade que é unificada no seu próprio
interior e não pode ser dividida além disso; por outro lado, é também uma
entidade que é "singular, distintiva, única" (veja Williams, 1976;
pp. 133-5: verbete "individual"). Muitos movimentos importantes no
pensamento e na cultura ocidentais contribuíram para a emergência dessa nova
concepção: a Reforma e o Protestantismo, que libertaram a consciência
individual das instituições religiosas da Igreja e a expuseram diretamente aos
olhos de Deus; o Humanismo Renascentista, que colocou o Homem (sic) no centro
do universo; as revoluções cientificas, que conferiram ao Homem a faculdade e
as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza; e
o Iluminismo, centrado na imagem do Homem racional, científico, libertado do
dogma e da intolerância, e diante do qual se estendia a totalidade da história
humana, para ser compreendida e dominada.
Grande parte da história da filosofia
ocidental consiste de reflexões ou refinamentos dessa concepção do sujeito,
seus poderes e suas capacidades. Uma figura importante, que deu a essa
concepção sua formulação primária, foi o filósofo francês René Descartes
(1596-1650). Algumas vezes visto como o "pai da Filosofia moderna",
Descartes foi uni matemático e cientista, o fundador da geometria analítica e
da ótica, e foi profundamente influenciado pela "nova ciência" do
século XVII. Ele foi atingido pela profunda dúvida que se seguiu ao deslocamento
de Deus do centro do universo. E o fato de que o sujeito moderno
"nasceu" no meio da dúvida e do ceticismo metafísico nos faz lembrar
que ele nunca foi estabelecido e unificado como essa forma de descrevê-lo
parece sugerir (veja Forester, 1987). Descartes acertou as contas com Deus ao
torná-lo o Primeiro Movimentador de toda criação; daí em diante, ele explicou o
resto do mundo material inteiramente em termos mecânicos e matemáticos.
Descartes postulou duas
substâncias distintas — a substância espacial (matéria) e a substância pensante
(mente). Ele refocalizou, assim, aquele grande dualismo entre a
"mente" e a "matéria" que tem afligido a Filosofa desde
então. As coisas devem ser explicadas, ele acreditava, por uma redução aos seus
elementos essenciais à quantidade mínima de elementos e, em última análise, aos
seus elementos irredutíveis. No centro da "mente" ele colocou o
sujeito individual, constituído por sua capacidade para raciocinar e pensar.
"Cogito, ergo sum" era a palavra de ordem de Descartes:
"Penso, logo existo" (ênfase minha). Desde então, esta concepção cio
sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento, tem
sido conhecida como o "sujeito cartesiano".
Outra contribuição crítica foi feita por
John Locke, o qual, em seu Ensaio sobre a compreensão humana, definia o
indivíduo em termos da "mesmidade (sameness) de um ser
racional" — isto é, uma identidade que permanecia a mesma e que era
contínua com seu sujeito: "a identidade da pessoa alcança a exata extensão
em que sua consciência pode ir para trás, para qualquer ação ou pensamento
passado" (Locke, 1967, pp. 212213). Esta figura (ou dispositivo
conceitual) — o "indivíduo soberano" — está inscrita em cada um dos
processos e práticas centrais que fizeram o mundo moderno. Ele (sic) era o
"sujeito" da modernidade em dois sentidos: a origem ou
"sujeito" da razão, do conhecimento e da prática; e aquele que sofria
as conseqüências dessas práticas — aquele que estava "sujeitado" a
elas (veja Foucault, 1986 e também Penguin Dictionary of Sociology:
verbete "subject").
Algumas pessoas têm questionado se o
capitalismo realmente exigiu uma concepção de indivíduo soberano desse tipo
(Abercrombie et alli, 1986). Entretanto, a emergência de urna concepção mais
individualista do sujeito é amplamente aceita. Raymond Williams sintetizou essa
imersão do sujeito moderno nas práticas e discursos da modernidade na seguinte
passagem:
A emergência de noções de
individualidade, no sentido moderno, pode ser relacionada ao colapso da ordem social,
econômica e religiosa medieval. No movimento geral contra o feudalismo houve
uma nova ênfase na existência pessoal do homens, acima e além de seu lugar e
sua função numa rígida sociedade hierárquica. Houve uma ênfase similar, no
Protestantismo, na relação direta e individual do homem com Deus, em oposição a
esta relação mediada pela Igreja. Mas foi só ao final do século XVII e no
século XVIII que um novo modo de análise, na Lógica e na Matemática, postulou o
indivíduo como a entidade maior (cf. as "mônadas" de Leibniz), a
partir da qual outras categorias (especialmente categorias coletivas) eram
derivadas. O pensamento político do Iluminismo seguiu principalmente este
modelo. O argumento começava com os indivíduos, que tinham uma existência primária
e inicial. As leis e as formas de sociedade eram deles derivadas: por
submissão, como em Hobbes; por contrato ou consentimento, ou pela nova versão
da lei natural, no pensamento liberal. Na economia clássica, o comércio era
descrito através de um modelo que supunha indivíduos separados que [possuíam
propriedade e] decidiam, em alguns ponto de partida, entrar em relações
econômicas ou comerciais. Na ética utilitária, indivíduos separados calculavam
as conseqüências desta ou daquela ação que eles poderiam empreender (Williams,
1976, pp.135-6).
Ainda era possível, no século XVIII,
imaginar os grandes processos da vida moderna como estando centrados no
indivíduo "sujeito-da-razão". Mas à medida em que as sociedades
modernas se tornavam mais complexas, elas adquiriam uma forma mais coletiva e
social. As teorias clássicas liberais de governo, baseadas nos direitos e
consentimento individuais, foram obrigadas a dar conta das estruturas do
estado- nação e das grandes massas que fazem uma democracia moderna. As leis
clássicas da economia política, da propriedade, do contrato e da troca tinham
de atuar, depois da industrialização, entre as grandes formações de classe do
capitalismo moderno. O empreendedor individual da Riqueza das "ações de
Adam Smith ou mesmo d'O capital de Marx foi transformado nos conglomerados
empresariais da economia moderna. O cidadão individual tornou- se enredado nas
maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno.
Emergiu, então, unia concepção mais social
do sujeito. O indivíduo passou a ser visto como mais localizado e
"definido" no interior dessas grandes estruturas e formações
sustentadoras da sociedade moderna. Dois importantes eventos contribuíram para
articular um conjunto mais amplo de fundamentos conceptuais para o sujeito
moderno. O primeiro foi a biolo0a d arwiniana. O sujeito humano foi
"biologizado" — a razão tinha uma base na Natureza e a mente uni
"fundamento" no desenvolvimento físico do cérebro humano.
O segundo evento foi o surgimento das novas
ciências sociais. Entretanto, as transformações que isso pôs em ação foram
desiguais:
- O "indivíduo soberano", com as suas (dele) vontades,
necessidades, desejos e interesses, permaneceu a figura central tanto nos
discursos da economia moderna quanto nos da lei moderna.
- O dualismo típico do pensamento cartesiano foi institucionalizado
na divisão das ciências sociais entre a psicologia e as outras disciplinas.
O estudo do indivíduo e de seus processos mentais tornou-se o objeto de
estudo especial e privilegiado da psicologia.
- A sociologia, entretanto, forneceu uma crítica do
"individualismo racional" do sujeito cartesiano. Localizou o
indivíduo em processos de grupo e nas normas coletivas as quais,
argumentava, subjaziam a qualquer contrato entre sujeitos individuais. Em
conseqüência, desenvolveu uma explicação alternativa do modo como os
indivíduos são formados subjetivamente através de sua participação em
relações sociais mais amplas ; e, inversamente, do modo como os processos
e as estruturas são sustentados pelos papéis que os indivíduos neles
desempenham. Essa "internalização" do exterior no sujeito, e
essa "externalização" do interior, através da ação no mundo
social (como discutida antes), constituem a descrição sociológica primária
do sujeito moderno e estão compreendidas na teoria da socialização. Como
foi observado acima, G. H. Mead e os interacionistas simbólicos adotaram
unia visão radicalmente interativa deste processo. A integração do
indivíduo na sociedade tinha sido uma preocupação de longa data da
sociologia. Teóricos como Goffman estavam profundamente atentos ao modo
como o "eu" é apresentado em diferentes situações sociais, e
como os conflitos entre estes diferentes papéis sociais são negociados. Em
uni nível mais macrossociológico, Parsons estudou o "ajuste" ou complementaridade
entre "o eu" e o sistema social. Não obstante, alguns críticos
alegariam que a sociologia convencional mantivera algo do dualismo de
Descartes, especialmente em sua tendência para construir o problema como
uma relação entre duas entidades conectadas mas separadas: aqui, o
"indivíduo e a sociedade".
Este modelo sociológico interativo, com sua
reciprocidade estável entre "interior" e "exterior", é, em
grande parte, um produto da primeira metade do século XX, quando as ciências
sociais assumem sua forma disciplinar atual. Entretanto, exatamente no mesmo
período, um quadro mais perturbado e perturbador do sujeito e da identidade
estava começando a emergir dos movimentos estéticos e intelectuais associado
com o surgimento do Modernismo.
Encontramos, aqui, a figura do indivíduo
isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da
metrópole anônima e impessoal. Exemplos disso incluem a famosa descrição do
poeta Baudelaire em "Pintor da vida moderna", que ergue sua casa
"no coração único da multidão, em meio ao ir e vir dos movimentos, em meio
ao fugidio e ao infinito" e que "se torna um único corpo com
multidão", entra na multidão "como se fosse um imenso reservatório de
energia elétrica"; o, flaneur (ou o vagabundo), que vagueia entre as novas
arcadas das lojas, observando o passageiro espetáculo da metrópole, que Walter
Benjamin celebrou no seu ensaio sobre a Paris de Baudelaire, e cuja
contrapartida na modernidade tardia é, provavelmente, o turista (cf. Urry,
1990); "K", a vítima anônima, confrontado por uma burocracia sem
rosto, na novela de Kafka, O Processo; e aquela legião de figuras alienadas d a
literatura e da crítica social do século XX que visavam representar a
experiência singular da modernidade. Várias dessas "instâncias exemplares
da modernidade", como as chama Frisby, povoam as páginas dos principais
teóricos sociais da virada do século, como George Simmel, Alfred Schutz e
Siegfried Kracauer (todos os quais tentaram capturar as características essenciais
da modernidade em ensaios famosos, tais como The Stranger ou Outsider) (veja
Frisby, 1985, p.109). Estas imagens mostraram-se proféticas do que iria
acontecer ao sujeito cartesiano e ao sujeito sociológico na modernidade tardia.
Descentrando o sujeito
Aquelas pessoas que sustentam que as
identidades modernas estão sendo fragmentadas argumentam que o que aconteceu à
concepção do sujeito moderno, na modernidade tardia, não foi simplesmente sua
desagregação, mas seu deslocamento. Elas descrevem esse deslocamento através de
uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno. Nesta seção, farei
um rápido esboço de cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências
humanas ocorridos no pensamento, no período da modernidade tardia (a segunda
metade do século XX), ou que sobre ele tiveram seu principal impacto, e cujo
maior efeito, argumenta-se, foi o descentramento final do sujeito cartesiano.
A primeira descentração importante refere-
se às tradições do pensamento marxista. Os escritos de Marx pertencem,
naturalmente, ao século XIX e não ao século XX. Mas um dos modos pelos quais
seu trabalho foi redescoberto e reinterpretado na década de sessenta foi à luz
da sua afirmação de que os "homens (sic) fazem a história, mas apenas sob
as condições que lhes são dadas". Seus novos intérpretes leram isso no
sentido de que os indivíduos não poderiam de nenhuma forma ser os
"autores" ou os agentes da história, uma vez que eles podiam agir
apenas com base em condições históricas criadas por outros e sob as quais eles
nasceram, utilizando os recursos materiais e de cultura que lhes foram
fornecidos por gerações anteriores.
Eles argumentavam que o marxismo,
corretamente entendido, deslocara qualquer noção de agência individual. O
estruturalista marxista Louis Althusser (1918-1989) (ver Penguin Dictionary
of Sociology: verbete "Althusser") afirmou que, ao colocar as
relações sociais (modos de produção, exploração da força de trabalho, os
circuitos do capital) e não tuna noção abstrata de homem no centro de seu
sistema teórico, Marx deslocou duas proposições-chave da filosofia moderna:
- que há uma essência universal de homem;
- que essa essência é o atributo de "cada indivíduo
singular", o qual é seu sujeito real:
Esses dois postulados são
complementares e indissolúveis. Mas sua existência e sua unidade pressupõem
toda unia perspectiva de mundo empirista-idealista. Ao rejeitar a essência do
homem como sua base teórica, Marx rejeitou todo esse sistema orgânico de
postulados. Ele expulsou as categorias filosóficas do sujeito do empirismo, da
essência ideal, de todos os domínios em que elas tinham reinado de forma
suprema. Não apenas da economia política (rejeição do mito do homo economicus,
isto é, do indivíduo, com faculdades e necessidades definidas, como sendo o
sujeito da economia clássica); não apenas da história; ... não apenas da ética
(rejeição da idéia ética kantiana); mas também da própria filosofia (Althusser,
1966, p. 228).
Essa "revolução teórica total"
foi, é óbvio, fortemente contestada por muitos teóricos humanistas que dão
maior peso, na explicação histórica, à agência humana. Não precisamos discutir
aqui se Althusser estava total ou parcialmente certo, ou inteiramente errado. O
fato é que, embora seu trabalho tenha sido amplamente criticado, seu
"anti-humanismo teórico" (isto é, um modo de pensar oposto às teorias
que derivam seu raciocínio de alguma noção de essência universal de Homem,
alojada em cada sujeito individual) teve um impacto considerável sobre muitos
ramos do pensamento moderno.
O segundo dos grandes
"descentramentos" no pensamento ocidental do século XX vem da
descoberta do inconsciente por Freud. A teoria de Freud de que nossas
identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com
base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona de
acordo com uma "lógica" muito diferente daquela da Razão, arrasa com
o conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e
unificada— o "penso, logo existo", do sujeito de Descartes. Este
aspecto do trabalho de Freud tem tido também um profundo impacto sobre o
pensamento moderno nas três últimas décadas. A leitura que pensadores
psicanalíticos, como Jacques Lacan, fazem de Freud é que a imagem do eu como
inteiro e unificado é algo que a criança aprende apenas gradualmente,
parcialmente, e com grande dificuldade. Ela não se desenvolve naturalmente a
partir do interior do núcleo do ser da criança, mas é formada em relação com os
outros; especialmente nas complexas negociações psíquicas inconscientes, na primeira
infância, entre a criança e as poderosas fantasias que ela tem de suas figuras
paternas e maternas. Naquilo que Lacan chama de "fase do espelho", a
criança que não está ainda coordenada e não possui qualquer auto-imagem como
uma pessoa "inteira", se vê ou se "imagina" a si própria
refletida — sej a literalmente, no espelho, seja figurativamente, no
"espelho" do olhar do outro — como uma "pessoa inteira"
(Lacan, 1977). (Aliás, Althusser tomou essa metáfora emprestada de Lacan, ao
tentar descrever a operação da ideologia). Isto está próximo, de certa forma,
da concepção do "espelho", de Mead e Cooley, do eu interativo; exceto
que para eles a socialização é uma questão de aprendizagem consciente, enquanto
que para Freud, a subjetividade é o produto de processos psíquicos
inconscientes.
A formação do eu no "olhar" do
Outro, de acordo com Lacan, inicia a relação da criança com os sistemas
simbólicos fora dela mesma e é, assim, o momento da sua entrada nos vários sistemas
de representação simbólica —incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual.
Os sentimentos contraditórios e não-resolvidos que acompanham essa difícil
entrada (o sentimento dividido entre amor e ódio pelo pai, o conflito entre o
desejo de agradar e o impulso para rejeitar a mãe, a divisão do eu entre suas
partes "boa" e "má", a negação de sua parte masculina ou
feminina, e assim por diante), que são aspectos- chave da "formação
inconsciente do sujeito" e que deixam o sujeito "dividido",
permanecem com a pessoa por toda a vida. Entretanto, embora o sujeito esteja
sempre partido ou dividido, ele vivencia sua própria identidade como se ela
estivesse reunida e "resolvida", ou unificada, como resultado da
fantasia de si mesmo como uma "pessoa" unificada que ele formou na
fase do espelho. Essa, de acordo com esse tipo de pensamento psicanalítico, é a
origem contraditória da "identidade".
Assim, a identidade é realmente algo
formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo
inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo
"imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre
incompleta, está sempre "em processo", sempre "sendo
formada". As partes "femininas" do eu masculino, por exemplo,
que são negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em
muitas formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez de falar da
identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la
como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da
identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas formas
através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós
continuamos buscando a "identidade" e construindo biografias que
tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque
procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude.
De novo, o trabalho de Freud e o de
pensadores psicanalíticos como Lacan, que o lêem dessa forma, têm sido bastante
questionados. Por definição, os processos inconscientes não podem ser
facilmente vistos ou examinadas. Eles têm que ser inferidos pelas elaboradas
técnicas psicanalíticas da reconstrução e da interpretação e não são facilmente
suscetíveis à "prova". Não obstante, seu impacto geral sobre as
formas modernas de pensamento tem sido muito considerável. Grande parte do
pensamento moderno sobre a vida subjetiva e psíquica é "pós-
freudiana", no sentido de que toma o trabalho de Freud sobre o
inconsciente como certo e dado, mesmo que rejeite algumas de suas hipóteses
específicas. Outra vez, podemos avaliar o dano que essa forma de pensamento
causa a noções que vêem o sujeito racional e a identidade como fixos e
estáveis.
O terceiro descentramento que examinarei
está associado com o trabalho do lingüista estrutural, Ferdinand de Saussure.
Saussure argumentava que nós não somos, em nenhum sentido, os
"autores" das afirmações que fazemos ou dos significados que
expressamos na língua. Nós podemos utilizar a língua para produzir significados
apenas nos posicionando no interior das regras da língua e dos sistemas de
significado de nossa cultura. A língua é um sistema social e não um sistema
individual. Ela preexiste a nós. Não podemos, em qualquer sentido simples, ser
seus autores. Falar uma língua não
significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais;
significa também ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em
nossa língua e em nossos sistemas culturais.
Além disso, os significados das palavras não
são fixos, numa relação um-a-um com os objetos ou eventos no mundo existente
fora da língua. O significado surge nas relações de similaridade e diferença
que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua. Nós
sabemos o que é a "noite" porque ela não é o "dia".
Observe- se a analogia que existe aqui entre língua e identidade. Eu sei quem
"eu" sou em relação com "o outro" (por exemplo, minha mãe)
que eu não posso ser. Como diria Lacan, a identidade, como o inconsciente,
"está estruturada como a língua". O que modernos filósofos da
linguagem — como Jacques Derrida, influenciados por Saussure e pela
"virada lingüística" — argumentam é que, apesar de seus melhores
esforços, o/a falante individual não pode, nunca, fixar o significado de uma
forma final, incluindo o significado de sua identidade. As palavras são
"multimoduladas". Elas sempre carregam ecos de outros significados
que elas colocam em movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o
significado. Nossas afirmações são baseadas em proposições e premissas das
quais nós não temos consciência, mas que são, por assim dizer, conduzidas na
corrente sangüínea de nossa língua. Tudo que dizemos tem um "antes" e
um "depois" — uma "margem" na qual outras pessoas podem
escrever. O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a
identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está
constantemente escapulindo de nós. Existem sempre significados suplementares
sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas
tentativas para criar mundos fixos e estáveis (veja Derrida, 1981).
O quarto descentramento principal da
identidade e do sujeito ocorre no trabalho do filósofo e historiador francês
Michel Foucault. Numa série de estudos, Foucault produziu uma espécie de
"genealogia do sujeito moderno". Foucault destaca um novo tipo de
poder, que ele chama de "poder disciplinar", que se desdobra ao longo
do século XIX, chegando ao seu desenvolvimento máximo no início do presente
século. O poder disciplinar está preocupado, em primeiro lugar, com a
regulação, a vigilância é o governo da espécie humana ou de populações inteiras
e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo. Seus locais são aquelas novas
instituições que se desenvolveram ao longo do século XIX e que
"policiam" e disciplinam as populações modernas — oficinas, quartéis,
escolas, prisões, hospitais, clínicas e assim por diante (veja, por exemplo,
História da loucura, O nascimento da clínica e Vigiar e punir).
O objetivo do "poder disciplinar"
consiste em manter "as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidade e
os prazeres do indivíduo", assim como sua saúde física e moral, suas
práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com
base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento especializado dos
profissionais e no conhecimento fornecido pelas "disciplinas" das
Ciências Sociais. Seu objetivo básico consiste em produzir "um ser humano
que possa ser tratado como um corpo dócil" (Dreyfus e Rabinow, 1982, p.
135).
O que é particularmente interessante, do
ponto de vista da história do sujeito moderno, é que, embora o poder
disciplinar de Foucault seja o produto das novas instituições coletivas e de
grande escala da modernidade tardia, suas técnicas envolvem uma aplicação do
poder e do saber que "individualiza" ainda mais o sujeito e envolve
mais intensamente seu corpo:
Num regime disciplinar, a
individualização é descendente. Através da vigilância, da observação constante,
todas aquelas pessoas sujeitas ao controle são individualizadas... O poder não
apenas traz a individualidade para o campo da observação, mas também fixa
aquela individualidade objetiva no campo da escrita. Um imenso e meticuloso
aparato documentário torna- se um componente essencial do crescimento do poder
[nas sociedades modernas]. Essa acumulação de documentação individual num
ordenamento sistemático torna "possível a medição de fenômenos globais, a
descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, o cálculo de
distâncias entre os indivíduos, sua distribuição numa dada população"
(Dreyfus e Rabinow, 1982, p. 159, citando Foucault).
Não é necessário aceitar cada detalhe da
descrição que Foucault faz do caráter abrangente dos "regimes
disciplinares" do moderno poder administrativo para compreender o paradoxo
de que, quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da
modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do
sujeito individual.
O quinto descentramento que os proponentes
dessa posição citam é o impacto do feminismo, tanto como uma crítica teórica
quanto como um movimento social. O feminismo faz parte daquele grupo de
"novos movimentos sociais", que emergiram durante os anos sessenta (o
grande marco da modernidade tardia), juntamente com as revoltas estudantis, os
movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos
civis, os movimentos revolucionários do "Terceiro Mundo", os
movimentos pela paz e tudo aquilo que está associado com "1968". 0
que é importante reter sobre esse momento histórico é que:
- Esses movimentos se opunham tanto à política liberal capitalista do
Ocidente quanto à política "estalinista" do Oriente.
- Eles afirmavam tanto as dimensões "subjetivas" quanto as
dimensões "objetivas " da política.
- Eles suspeitavam de todas as formas burocráticas de organização e
favoreciam a espontaneidade e os atos de vontade política.
- Como argumentado anteriormente, todos esses movimentos tinham uma
ênfase e uma forma cultural fortes. Eles abraçaram o "teatro" da
revolução.
- Eles refletiam o enfraquecimento ou o fim da classe política e das
organizações políticas de massa com ela associadas, bem como sua
fragmentação em vários e separados movimentos sociais.
- Cada movimento apelava para a identidade social de seus
sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual
aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento
antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o
nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de
identidade — uma identidade para cada movimento.
Mas o feminismo teve também uma relação mais
direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico:
- Ele questionou a clássica distinção entre o "dentro" e o
"fora", o "privado" e "público". O slogan do
feminismo era: "o pessoal é politico".
- Ele abriu, portanto, para a contestação politica, arenas
inteiramente novas de vida social: a família, a sexualidade, o trabalho
doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças,
etc.
- Ele também enfatizou, como uma questão política e social, o tema da
forma como somos formados e produzidos como sujeitos generificados. Isto
é, ele politizou a subjetividade, a identidade e o processo de
identificação (como homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas).
- Aquilo que começou como uni movimento dirigido à contestação da
posição social das mulheres expandiu-se para incluir a formação das
identidades sexuais e de gênero.
- O feminismo questionou a noção de que os homens e as mulheres eram
parte da mesma identidade, a "Humanidade", substituindo-a pela
questão da diferença sexual.
Neste capítulo, tentei, pois, mapear as
mudanças conceituais através das quais, de acordo com alguns teóricos, o
"sujeito" do Iluminismo, visto como tendo urna identidade fixa e
estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias,
inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno. Descrevi isso através de
cinco descentramentos. Deixem-me lembrar outra vez que muitas pessoas não
aceitam as implicações conceituais e intelectuais desses desenvolvimentos do
pensamento moderno. Entretanto, poucas negariam agora seus efeitos
profundamente desestabilizadores sobre as idéias da modernidade tardia e, particularmente,
sobre a forma como o sujeito e a questão da identidade são conceptualizados.
3. AS CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES
IMAGINADAS
Tendo descrito as mudanças conceptuais pelas
quais os conceitos de sujeito e identidade da modernidade tardia e da
pós-modernidade emergiram, me voltarei, agora, para a questão de como este
"sujeito fragmentado" é colocado em termos de suas identidades
culturais. A identidade cultural particular com a qual estou preocupado é a
identidade nacional (embora outros aspectos estejam aí implicados). O que está
acontecendo à identidade cultural na modernidade tardia? Especificamente, como
as identidades culturais nacionais estão sendo afetadas ou deslocadas pelo
processo de globalização?
No mundo moderno, as culturas nacionais em
que nascemos se constituem em unia das principais fontes de identidade
cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou
galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de
forma metafórica. Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos
genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de
nossa natureza essencial.
O filósofo conservador
Roger Scruton argumenta que:
A condição de homem (sic)
exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo, faça isso
somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo trais
amplo — conto um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de
algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece
instintivamente corno seu lar (Scruton, 1986, p. 156).
Ernest Gellner, a partir de uma posição mais
liberal, também acredita que sem um sentimento de identificação nacional o
sujeito moderno experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva:
A idéia de um homem (sic)
sem uma nação parece impor urna (grande) tensão à imaginação moderna. Um homem
deve ter uma nacionalidade, assim como deve ter um nariz e duas orelhas. Tudo
isso parece óbvio, embora, sinto, não seja verdade. Mas que isso viesse a
parecer tão obviamente verdadeiro é, de fato, um aspecto, talvez o mais
central, do problema do nacionalismo. Ter uma nação não é um atributo inerente
da humanidade, mas aparece, agora, como tal (Gellner, 1983, p. 6).
O argumento que estarei considerando aqui é
que, na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nós
nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação.
Nós só sabemos o que significa ser inglês" devido ao modo como a "inglesidade"
(Englishness) veio a ser representada — como um conjunto de significados
— pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade
política mas algo que produz sentidos — um sistema de representação cultural.
As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia
da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma
comunidade simbólica e é isso que explica seu "poder para gerar um
sentimento de identidade e lealdade" (Schwarz, 1986 , p.106).
As culturas nacionais são uma forma
distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna
ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à
região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura
nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas,
de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de "teto político"
do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as
identidades culturais modernas.
A formação de urna cultura nacional
contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou urna
única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em toda a nação,
criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como,
por exemplo, um sistema educacional nacional. Dessa e de outras formas, a
cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um
dispositivo da modernidade. Não obstante, há outros aspectos de uma cultura
nacional que a empurram numa direção diferente, trazendo à tona o que Homi
Bhabha chama de "a ambivalência particular que assombra a idéia da
nação" (Bhabha, 1990, p. 1). Algumas dessas ambigüidades são exploradas no
capítulo 4. Na próxima seção discutirei como uma cultura nacional
funciona como um sistema de representação. Na seção seguinte, discutirei se as
identidades nacionais são realmente tão unificadas e tão homogêneas como
representam ser. Apenas quando essas duas questões tiverem sido respondidas é
que poderemos considerar adequadamente o argumento de que as identidades
nacionais foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, mas que estão sendo
agora deslocadas pelos processos de globalização.
Narrando a nação: uma comunidade imaginada
As culturas nacionais são compostas não
apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma
cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós
mesmos (veja Penguin Dictionary of Sociology: verbete "discourse").
As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre "a nação", sentidos
com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos
estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que
conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como
argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma
"comunidade imaginada".
Anderson argumenta que as diferenças entre
as nações residem nas formas diferentes pelas quais elas são imaginadas. Ou,
como disse aquele grande patriota britânico, Enoch Powell: "a vida das
nações, da mesma forma que a dos homens, é vivida, em grande parte, na
imaginação" (Powell, 1969, p. 245). Mas como é imaginada a nação moderna?
Que estratégias representacionais são acionadas para construir nosso senso
comum sobre o pertencimento ou sobre a identidade nacional? Quais são as
representações, digamos, de "Inglaterra", que dominam as identificações
e definem as identidades do povo "inglês"? "As nações",
observou Homi Bhabha, "tais como as narrativas, perdem suas origens nos
mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da
mente" (Bhabha, 1990, p.1).Como é contada a narrativa da cultura nacional?
Dos muitos aspectos que uma resposta
abrangente à questão incluiria selecionei cinco elementos principais:
- Em primeiro lugar, há a narrativa da nação, tal como é contada e
recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura
popular. Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas,
cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam
ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os
desastres que dão sentido à nação. Como membros de tal "comunidade
imaginada", nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando
dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona
existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que
preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. Desde a imagem de
uma verde e agradável terra inglesa, com seu doce e tranqüilo interior,
com seus chalés de treliças e jardins campestres — "a ilha
coroada" de Shakespeare — até às cerimônias públicas, o discurso da
"inglesidade" (englishness) representa o que "a
Inglaterra" é, dá sentido à identidade de "ser inglês" e
fixa a "Inglaterra" como um foco de identificação nos corações
ingleses (e anglófilos). Como observa Bill Schwarz:
Essas coisas formam a trama
que nos prende invisivelmente ao passado. Do mesmo modo que o nacionalismo
inglês é negado, assim também o é sua turbulenta e contestada história. O que
ganhamos ao invés disso... é uma ênfase na tradição e na herança, acima de tudo
na continuidade, de forma que nossa cultura politica presente é vista como o
florescimento de uma longa e orgânica evolução (Schwarz, 1986, p. 155).
- Em segundo lugar, há a ênfase nas origens, na continuidade, na
tradição e na intemporalidade. A identidade nacional é representada como
primordial — "está lá, na verdadeira natureza das coisas",
algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser "acordada"
de sua "longa, persistente e misteriosa sonolência", para
reassumir sua inquebrantável existência (Gellner, 1983, p. 48). Os elementos
essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas as
vicissitudes da história. Está lá desde o nascimento, unificado e
contínuo, "imutável" ao longo de todas as mudanças, eterno. A
sra. Thatcher observou, na época da Guerra das Malvinas, que havia algumas
pessoas "que pensavam que nós não poderíamos mais fazer as grandes
coisas que uma vez havíamos feito... que a Grã-Bretanha não era mais a
nação que tinha construído um Império e dominado um quarto do mundo...
Bem, eles estavam errados... A Grã- Bretanha não mudou" (citado em
Barnett, 1982,p. 63).
- Uma terceira estratégia discursiva é constituída por aquilo que
Hobsbawm e Ranger chamam de invenção da tradição: "Tradições que
parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente
e algumas vezes inventadas... Tradição inventada significa um conjunto de
práticas ... , de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos
valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual,
automaticamente, implica continuidade com um passado histórico
adequado". Por exemplo, "nada parece ser mais antigo e vinculado
ao passado imemorial do que a pompa que rodeia a monarquia britânica e
suas manifestações cerimoniais públicas. No entanto..., na sua forma moderna,
ela é o produto do final do século XIX e XX" (Hobsbawm e Ranger,
1983, p.').
- Um quarto exemplo de narrativa da cultura nacional é a do mito
fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de
seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas
brumas do tempo, não do tempo "real", mas de um tempo
"mítico". Tradições inventadas tornam as confusões e os
desastres da história inteligíveis, transformando a desordem em
"comunidade" (por exemplo, a Blitz ou a evacuação durante a II
Grande Guerra) e desastres em triunfos (por exemplo, Dunquerque). Mitos de
origem também ajudam povos desprivilegiados a "conceberem e
expressarem seu ressentimento e sua satisfação em termos
inteligíveis" (Hobsbawm e Ranger, 1983, p.1). Eles fornecem uma
narrativa através da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa,
que precede às rupturas da colonização, pode ser construída (por exemplo,
o rastafarianismo para os pobres despossuídos de Kingston, Jamaica; ver
Hall, 1985). Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos. (Digo
"mitos" porque, como foi o caso com muitas nações africanas que
emergiram depois da descolonização, o que precedeu à colonização não foi
"uma única nação, um único povo", mas muitas culturas e sociedades
tribais diferentes).
- A identidade nacional é também muitas vezes simbolicamente baseada
na idéia de um povo ou folk puro, original. Mas, nas realidades do
desenvolvimento nacional, é raramente esse povo (folk) primordial
que persiste ou que exercita o poder. Como, acidamente, observa Gellner:
"Quando [os ruritananos] vestiram os trajes do povo e rumaram para as
montanhas, compondo poemas nos clarões das florestas, eles não sonhavam em
se tornarem um dia também poderosos burocratas, embaixadores e
ministros" (1983, p. 61).
O discurso da cultura nacional não é, assim,
tão moderno como aparenta ser. Ele constrói identidades que são colocadas, de
modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por
retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à
modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar
para o passado, a recuar defensivamente para aquele "tempo perdido",
quando a nação era "grande"; são tentadas a restaurar as identidades
passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da
cultura nacional. Mas freqüentemente esse mesmo retorno ao passado oculta urna
luta para mobilizar as "pessoas" para que purifiquem suas fileiras,
para que expulsem os "outros" que ameaçam sua identidade e para que
se preparem para uma nova marcha para a frente. Durante os anos oitenta, a
retórica do thatcherismo utilizou, algumas vezes, os dois aspectos daquilo que
Tom Nairn chama de "face de Janus" do nacionalismo (Nairn, 1977):
ditar para trás, para as glórias do passado imperial e para os "valores
vitorianos" e, ao mesmo tempo, empreender uma espécie de modernização, em
preparação para um novo estágio da competição capitalista global. Alguma coisa
do mesmo tipo pode estar ocorrendo na Europa Oriental. As áreas que se separam
da antiga União Soviética reafirmam suas identidades étnicas essenciais e
reivindicam uma nacionalidade sustentada por "estórias" (algumas
vezes extremamente duvidosas) de origens míticas, de ortodoxia religiosa e de
pureza racial. Contudo, elas podem também estar usando a nação como uma forma
através da qual possam competir com outras "nações" étnicas e poder,
assim, entrar no rico "clube" do Ocidente. Como tão agudamente
observou Immanuel Wallerstein, "os nacionalismos do mundo moderno são a
expressão ambígua [de um desejo] por... assimilação no universal... e,
simultaneamente, por... adesão ao particular, à reinvenção das diferenças. Na
verdade, trata-se de um universalismo através do particularismo e de um
particularismo através do universalismo" (Wallerstein, 1984, pp. 166-7).
Desconstruindo a "cultura nacional": identidade e diferença
A seção anterior discutiu como uma cultura
nacional atua como uma fonte de significados culturais, um foco de
identificação e um sistema de representação. Esta seção volta-se agora para a
questão de saber se as culturas nacionais e as identidades nacionais que elas
constroem são realmente unificadas. Em seu famoso ensaio sobre o tema,
Ernest Renan disse que três coisas constituem o princípio espiritual da unidade
de uma nação: "...a posse em comum de um rico legado de memórias..., o
desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva,
a herança que se recebeu" (Renan, 1990, p. 19). Devemos ter em mente esses
três conceitos, ressonantes daquilo que constitui uma cultura nacional como uma
"comunidade imaginada": as memórias do passado; o desejo
por viver em conjunto; a perpetuação da herança.
Timothy Brennan nos faz lembrar que a
palavra nação refere-se "tanto ao moderno estado-nação quanto a algo mais
antigo e nebuloso — a natio —uma comunidade local, um domicílio, urna condição
de pertencimento" (Brennan, 1990, p. 45). As identidades nacionais
representam precisamente o resultado da reunião dessas duas metades da equação
nacional — oferecendo tanto a condição de membro do estado-nação político
quanto unia identificação com a cultura nacional: "tornar a cultura e a
esfera política congruentes" e fazer com que "culturas razoavelmente
homogêneas, tenham, cada uma, seu próprio teto político" (Gellner, 1983,
p. 43). Gellner identifica claramente esse impulso por unificação, existente
nas culturas nacionais:
...a cultura é agora o meio
partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, antes, a atmosfera partilhada
mínima, apenas no interior da qual os membros de uma sociedade podem respirar e
sobreviver e produzir. Para tuna dada sociedade, ela tem que ser uma atmosfera
na qual podem todos respirar, falar e produzir; ela tem que ser, assim, a mesma
cultura (Gellner, 1983 , pp. 37-8).
Para dizer de forma simples: não importa
quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça,
uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los
todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a
identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que
anula e subordina a diferença cultural?
Essa idéia está sujeita à dúvida, por várias
razões. Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e
identificação simbólica. Ela é também unia estrutura de poder cultural.
Consideremos os seguintes pontos:
- A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram
unificadas por um longo processo de conquista violenta —isto é, pela supressão
forçada da diferença cultural. "O povo britânico" é constituído
por unia série desse tipo de conquistas — céltica, romana, saxônica, vikinge
normanda. Ao longo de toda a Europa, essa estória se repete ad nauseam.
Cada conquista subjugou povos conquistados e suas culturas, costumes,
línguas e tradições, e tentou impor uma hegemonia cultural mais unificada.
Como observou Ernest Renan, esses começos violentos que se colocam nas
origens das nações modernas têm, primeiro, que ser "esquecidos",
antes que se comece a forjar a lealdade com uma identidade nacional mais
unificada, mais homogênea. Assim, a cultura "britânica" não
consiste de uma parceria igual entre as culturas componentes do Reino
Unido, mas da hegemonia efetiva da cultura "inglesa", localizada
no sul, que se representa a si própria como a cultura britânica essencial,
por cima das culturas escocesas, galesas e irlandesas e, na verdade, por
cima de outras culturas regionais. Matthew Arnold, que tentou fixar o
caráter essencial do povo inglês a partir de sua literatura, afirmou, ao
considerar os celtas, que esses "nacionalismos provinciais tiveram
que ser absorvidos ao nível do político, e aceitos como contribuindo
culturalmente para a cultura inglesa" (Dodd, 1986, p. 12).
- Em segundo lugar, as nações são sempre compostas de diferentes
classes socais e diferentes grupos étnicos e de gênero. O nacionalismo
britânico moderno foi o produto de um esforço muito coordenado, no alto
período imperial e no período vitoriano tardio, para unificar as classes
ao longo de divisões sociais, ao provê-las com uni ponto alternativo de
identificação —pertencimento comum à "família da nação". Pode-se
desenvolver o mesmo argumento a respeito do gênero. As identidades
nacionais são fortemente generificadas. Os significados e os valores da
"ìnglesidade" (englishness) têm fortes associações
masculinas. As mulheres exercem um papel secundário como guardiãs do lar e
do clã, e como "mães" dos "filhos" (homens) da nação.
- Em terceiro lugar, as nações ocidentais modernas foram também os
centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo
uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados. Alguns
historiadores argumentam, atualmente, que foi nesse processo de comparação
entre as "virtudes" da "inglesidade" (Englishness)
e os traços negativos de outras culturas que muitas das características
distintivas das identidades inglesas foram primeiro definidas (veja C.
Hall,1992).
Em vez de pensar as culturas nacionais como
unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo
que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas
por profundas divisões e diferenças internas, sendo "unificadas"
apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. Entretanto
—como nas fantasias do eu "inteiro" de que fala a psicanálise lacanianas
identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas.
Uma forma de unificá-las tem sido a de
representá-las como a expressão da cultura subjacente de "um único
povo". A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às
características culturais —língua, religião, costume, tradições, sentimento de
"lugar" — que são partilhadas por um povo. E tentador, portanto,
tentar usar a etnia dessa forma "fundacional". Mas essa crença acaba,
no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação
que seja composta de apenas um único povo, unia única cultura ou etnia. As
nações modernas silo, todas, híbridos culturais.
E ainda mais difícil unificar a identidade nacional
em torno da raça. Em primeiro lugar, porque — contrariamente à crença
generalizada — a raça não é uma
categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica. Há
diferentes tipos e variedades, mas eles estão tão largamente dispersos no
interior do que chamamos de"raças"quanto entre uma "raça"e outra.A
diferença genética — o último refúgio das ideologias racistas — não pode ser
usada para distinguir um povo do outro. A raça é uma categoria discursiva e não
uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas
de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que
utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em
termos de características físicas — cor da pele, textura do cabelo,
características físicas e corporais, etc. — como marcas simbólicas, a fim de
diferenciar socialmente um grupo de outro.
Naturalmente o caráter não científico do
termo "raça" não afeta o modo "como a lógica racial e os quadros
de referência raciais são articulados e acionados, assim como não anula suas
conseqüências (Donald e Rattansi,1992, p.l). Nos últimos anos, as noções
biológicas sobre raça, entendida como constituída de espécies distintas (noções
que subjaziam a formas extremas da ideologia e do discurso nacionalista em
períodos anteriores: o eugenismo vitoriano, as teorias européias sobre raça, o
fascismo) têm sido substituídas por definições culturais, as quais possibilitam
que a raça desempenhe um papel importante nos discursos sobre nação e
identidade nacional. Paul Gilroy tem analisado as ligações entre, de um lado, o
racismo cultural e a idéia de raça e, de outro, as idéias de nação,
nacionalismo e pertencimento nacional:
Enfrentamos, de forma
crescente, um racismo que evita ser reconhecido como tal, porque é capaz de
alinhar "raça" com nacionalidade, patriotismo e nacionalismo. Um
racismo que tomou uma distância necessária das grosseiras idéias de
inferioridade e superioridade biológica busca, agora, apresentar uma definição
imaginária da nação como uma comunidade cultural unificada. Ele constrói e
defende uma imagem de cultura nacional — homogênea na sua branquidade, embora
precária e eternamente vulnerável ao ataque dos inimigos internos e externos...
Este hum racismo que responde à turbulência social e política da crise e à
administração da crise através da restauração da grandeza nacional na
imaginação. Sua construção onírica de nossa ilha coroada como etnicamente
purificada propicia um especial conforto contra as devastações do declínio
(nacional) (Gilroy, 1992, p.87).
Mas mesmo quando o conceito de
"raça" é usado dessa forma discursiva mais ampla, as nações modernas
teimosamente se recusam a ser determinadas por ela. Como observou Renan,
"as nações líderes da Europa são nações de sangue essencialmente misto: a
França é [ao mesmo tempo] céltica, ibérica e germânica. A Alemanha é germânica,
céltica e eslava. A Itália é o país onde... gauleses, etruscos, pelagianos e
gregos, para não mencionar outros, se intersectam numa mistura indecifrável. As
ilhas britânicas, consideradas como um todo, apresentam uma mistura de sangue
celta e germânico, cujas proporções são particularmente difíceis de
definir" (Renan, 1990, pp.14-15). E essas são misturas relativamente
simples se comparadas com as encontradas na Europa Central e Oriental.
Este breve exame solapa
a idéia da nação como uma identidade cultural unificada. As identidades
nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres
do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de
diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as identidades
nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as
culturas nacionais contribuem para "costurar" as diferenças numa
única identidade.
4. GLOBALIZAÇÃO
O capítulo anterior
questionou a idéia de que as identidades nacionais tenham sido alguma vez tão
unificadas ou homogêneas quanto fazem crer as representações que delas se
fazem. Entretanto, na história moderna, as culturas nacionais têm dominado a
"modernidade" e as identidades nacionais tendem a se sobrepor a
outras fontes, mais particularistas, de identificação cultural.
O que, então, está tão poderosamente
deslocando as identidades culturais nacionais, agora, no fim do século XX? A
resposta é: um complexo de processos e forças de mudança, que, por
conveniência, pode ser sintetizado sob o termo "globalização". Como
argumenta Anthony McGrew (1992), a "globalização" se refere àqueles
processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais,
integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de
espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais
interconectado. A globalização implica um movimento de distanciamento da idéia
sociológica clássica da "sociedade" como um sistema bem delimitado e
sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida
social está ordenada ao longo do tempo e do espaço" (Giddens, 1990, p.
64). Essas novas características temporais e espaciais, que resultam na
compressão de distâncias e de escalas temporais, estão entre os aspectos mais
importantes da globalização a ter efeito sobre as identidades culturais. Eles
são discutidos com mais detalhes no que se segue.
Lembremos que a globalização não é um
fenômeno recente: "A modernidade é inerentemente globalizante"
(Giddens, 1990, p. 63). Como argumentou David Held (1992), os estados-nação
nunca foram tão autônomos ou soberanos quanto pretendiam. E, como nos faz lembrar
Wallerstein, o capitalismo "foi, desde o início, um elemento da economia
mundial e não dos estados-nação. O capital nunca permitiu que suas aspirações
fossem determinadas por fronteiras nacionais" (Wallerstein, 1979, p. 19).
Assim, tanto a tendência à autonomia nacional quanto a tendência à globalização
estão profundamente enraizadas na modernidade (veja Wallerstein, 1991, p. 98).
Devemos ter em mente essas duas tendências
contraditórias presentes no interior da globalização. Entretanto, geralmente se
concorda que, desde os anos 70, tanto o alcance quanto o ritmo da integração
global aumentaram enormemente, acelerando os fluxos e os laços entre as nações.
Nesta e na próxima seção, tentarei descrever as conseqüências desses aspectos
da globalização sobre as identidades culturais, examinando três possíveis
conseqüências:
- As identidades nacionais estão se desintegrando, como
resultado do crescimento da homogeneização cultural e do "pós-moderno
global".
- As identidades nacionais e outras identidades "locais" ou
particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à
globalização.
- As identidades nacionais estão em declínio, mas novas
identidades — híbridas — estão tomando seu lugar.
Compressão espaço-tempo e identidade
Que impacto tem a última fase da
globalização sobre as identidades nacionais? Uma de suas características
principais é a "compressão espaço-tempo", a aceleração dos processos
globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas,
que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e
lugares situados a uma grande distância. David Harvey argumenta que:
A medida que o espaço se
encolhe para se tornar urna aldeia "global" de telecomunicações e
urna "espaçonave planetária" de interdependências econômicas e ecológicas
— para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas — e à medida em que Os
horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo que
existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão
de nossos mundos espaciais e temporais (Harvey, 1989, p. 240).
O que é importante para nosso argumento
quanto ao impacto da globalização sobre a identidade é que o tempo e o espaço
são também as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Todo
meio de representação — escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização
através da arte on dos sistemas de telecomunicação — deve traduzir seu objeto
em dimensões espaciais e temporais. Assim, a narrativa traduz os eventos numa
seqüência temporal "começo-meio-fim"; os sistemas visuais de
representação traduzem objetos tridimensionais em duas dimensões. Diferentes
épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas
espaço-tempo. Harvey contrasta o ordenamento racional do espaço e do tempo da
Ilustração (com seu senso regular de ordem, simetria e equilíbrio) com as
rompidas e fragmentadas coordenadas espaço- tempo dos movimentos modernistas do
final do século XIX e início do século XX. Podemos ver novas relações
espaço-tempo sendo definidas em eventos tão diferentes quanto a teoria da
relatividade de Einstein, as pinturas cubistas de Picasso e Braque, os
trabalhos dos surrealistas e dos dadaístas, os experimentos com o tempo e a
narrativa nos romances de Marcel Proust e James Joyce e o uso de técnicas de
montagem nos primeiros filmes de Vertov e Eisenstein.
No capitulo 3 argumentei que a
identidade está profundamente envolvida no processo de representação. Assim, a
moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes
sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as
identidades são localizadas e representadas. O sujeito masculino, representado nas pinturas
do século XVIII, no ato de inspeção de sua propriedade, através das
bem-reguladas e controladas formas espaciais clássicas, no crescente georgiano
(Bath) ou na residência de campo inglesa (Blenheim Palace), ou vendo a si
próprio nas vastas e controladas formas da Natureza de um jardim ou parque
formal (Capability Brown), tem um sentido muito diferente de identidade
cultural daquele do sujeito que vê a "si próprio/a" espelhado nos
fragmentados e fraturados "rostos" que olham dos planos e superfícies
partidos de uma das pinturas cubistas de Picasso. Todas as identidades estão
localizadas no espaço e no tempo simbólicos. Elas têm aquilo que Edward Said
chama de suas "geografias imaginárias" (Said, 1990): suas
"paisagens" características, seu senso de "lugar", de
"casa/lar", ou heimat, bem como suas localizações no tempo —
nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que
projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o
indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes.
Podemos pensar isso de uma outra forma: nos
termos daquilo que Giddens (1990) chama de separação entre espaço e lugar. O
"lugar" é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o
ponto de práticas sociais específicas que nos moldaram e nos formaram e com as
quais nossas identidades estão estreitamente ligadas:
Nas sociedades
pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez que as
dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas
pela presença"-- por uma atividade localizada... A modernidade separa,
cada vez mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão
"ausentes", distantes (em termos de local), de qualquer interação
face-a-face. Nas condições da modernidade..., os locais são inteiramente
penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes deles. O que
estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a
"forma visível" do local oculta as relações distanciadas que
determinam sua natureza (Giddens, 1990, p. 18).
Os lugares permanecem
fixos; é neles que temos "raízes". Entretanto, o espaço pode ser "cruzado"
num piscar de olhos — por avião a jato, por fax ou por satélite. Harvey chama
isso de "destruição do espaço através do tempo" (1989, p. 205)
Em direção ao pós-moderno global?
Alguns teóricos argumentam que o efeito
geral desses processos globais tem sido o de enfraquecer ou solapar formas
nacionais de identidade cultural. Eles argumentam que existem evidências de um
afrouxamento de fortes identificações com a cultura nacional, e um reforçamento
de outros laços e lealdades culturais, "acima" e "abaixo"
do nível do estado-nação. As identidades nacionais permanecem fortes,
especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de cidadania, mas as
identidades locais, regionais e comunitárias têm se tornado mais importantes.
Colocadas acima do nível da cultura nacional, as identificações
"globais" começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar, as
identidades nacionais.
Alguns teóricos culturais argumentam que a
tendência em direção a uma maior interdependência global está levando ao
colapso de todas as identidades culturais fortes e está produzindo aquela
fragmentação de códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase
no efêmero, no flutuante, no impermanente e na diferença e no pluralismo cultural
descrita por Kenneth Thompson (1992), mas agora numa escala global — o que
poderíamos chamar de pós-moderno global. Os fluxos culturais,
entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de
"identidades partilhadas"— como "consumidores" para os
mesmos bens, "clientes" para os mesmos serviços, "públicos"
para as mesmas mensagens e imagens — entre pessoas que estão bastante distantes
umas das outras no espaço e no tempo. A medida em que as culturas nacionais
tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as
identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas
através do bombardeamento e da infiltração cultural.
As pessoas que moram em aldeias pequenas,
aparentemente remotas, em países pobres, do "Terceiro Mundo", podem
receber, na privacidade de suas casas, as mensagens e imagens das culturas
ricas, consumistas, do Ocidente, fornecidas através de aparelhos de TV ou de
rádios portáteis, que as prendem à "aldeia global" das novas redes de
comunicação. Jeans e abrigos — o "uniforme" do jovem na cultura
juvenil ocidental — são tão onipresentes no sudeste da Ásia quanto na Europa ou
nos Estados Unidos, não só devido ao crescimento da mercantilização em escala
mundial da imagem do jovem consumidor, mas porque, com freqüência, esses itens
estão sendo realmente produzidos em Taiwan ou em Hong Kong ou na Coréia do Sul,
para as lojas finas de Nova York, Los Angeles, Londres ou Roma. E difícil
pensar na "comida indiana" como algo característico das tradições
étnicas do subcontinente asiático quando há uni restaurante indiano no centro
de cada cidade da Grã-Bretanha
Quanto mais a vida social se torna mediada
pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia
e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades
se tornam desvinculadas —desalojadas —de tempos, lugares, histórias e tradições
específicos e parecem "flutuar livremente". Somos confrontados por
uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor,
fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível
fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como
sonho, que contribuiu para esse efeito de "supermercado cultural". No
interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções
culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie
de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as
tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas.
Este fenômeno é conhecido como "homogeneização cultural".
Em certa medida, o que está sendo discutido
é a tensão entre o "global" e o "local" na transformação
das identidades. As identidades nacionais, como vimos, representam vínculos a
lugares, eventos, símbolos, histórias particulares. Elas representam o que
algumas vezes é chamado de uma forma particularista de vínculo ou
pertencimento. Sempre houve uma tensão entre essas identificações e identificações
mais universalistas —por exemplo, uma identificação maior com a
"humanidade" do que com a "inglesidade" (englishness). Esta
tensão continuou a existir ao longo da modernidade: o crescimento dos
estados-nação, das economias nacionais e das culturas nacionais continuam a dar
um foco para a primeira; a expansão do mercado mundial e da modernidade como
uni sistema global davam o foco para a segunda. No capítulo 5, que examina como
a globalização, em suas formas mais recentes, tem um efeito sobre as identidades,
pensaremos esse efeito em termos de novos modos de articulação dos aspectos
particulares e universais da identidade ou de novas formas de negociação da
tensão entre os dois.
5. O GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA
As identidades nacionais estão sendo
"homogeneizadas"? A homogeneização cultural é o grito angustiado
daqueles/as que estão convencidos/as de que a globalização ameaça solapar as
identidades e a "unidade" das culturas nacionais. Entretanto, como
visão do futuro das identidades num mundo pós-moderno, este quadro, da forma
como é colocado, é muito simplista, exagerado e unilateral.
Pode-se considerar, no mínimo, três
qualificações ou contratendências principais. A primeira vem do argumento de
Kevin Robin e da observação de que, ao lado da tendência em direção à
homogeneização global, há também uma fascinação com a diferença e com a
mercantilização da etnia e da "alteridade". Há, juntamente com o
impacto do "global", um novo interesse pelo "local". A
globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de
"nichos" de mercado), na verdade, explora a diferenciação local.
Assim, ao invés de pensar no global como "substituindo" o local seria
mais acurado pensar numa nova articulação entre "o global" e "o
local". Este "local" não deve, naturalmente, ser confundido com
velhas identidades, firmemente enraizadas em localidades bem delimitadas. Em
vez disso, ele atua no interior da lógica da globalização. Entretanto, parece
improvável que a globalização vá simplesmente destruir as identidades
nacionais. E mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas
identificações "globais" e novas identificações
"locais".
A segunda qualificação
relativamente ao argumento sobre a homogeneização global das identidades é que
a globalização é muito desigualmente distribuída ao redor do globo, entre
regiões e entre diferentes estratos da população dentro das regiões. Isto é o
que Doreen Massey chama de "geometria do poder" da globalização.
O terceiro ponto na
crítica da homogeneização cultural é a questão de se saber o que é mais afetado
por ela. Uma vez que a direção do fluxo é desequilibrada, e que continuam a
existir relações desiguais de poder cultural entre "o Ocidente" e
"o Resto", pode parecer que a globalização — embora seja, por
definição, algo que afeta o globo inteiro — seja essencialmente um fenômeno
ocidental.
Kevin Robins nos faz
lembrar que:
Embora tenha se projetado a
si próprio como trans-histórico e transnacional, como a força transcendente e
universalizadora da modernização e da modernidade, o capitalismo global é, na verdade,
um processo de ocidentalização — a exportação das mercadorias, dos valores, das
prioridades, das formas de vida ocidentais. Em um processo de desencontro
cultural desigual, as populações "estrangeiras" têm sido compelidas a
ser os sujeitos e os subalternos do império ocidental, ao mesmo tempo em que,
de forma não menos importante, o Ocidente vê-se face a face com a cultura
"alienígena" e "exótica" de seu "Outro". A
globalização, à medida que dissolve as barreiras da distância, torna o encontro
entre o centro colonial e a periferia colonizada imediato e intenso (Robins,
1991, p. 25).
Na última forma de globalização, são ainda
as imagens, os artefatos e as identidades da modernidade
ocidental, produzidos pelas indústrias
culturais das sociedades "ocidentais" (incluindo o Japão) que dominam
as redes globais. A proliferação das escolhas de identidade é mais ampla no
"centro" do sistema global que nas suas periferias. Os padrões de
troca cultural desigual, familiar desde as primeiras fases da globalização,
continuam a existir na modernidade tardia. Se quisermos provar as cozinhas
exóticas de outras culturas em um único lugar, devemos ir comer em Manhattan,
Paris ou Londres e não em Calcutá ou em Nova Delhi.
Por outro lado, as
sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais
ocidentais e, agora, mais do que nunca. A idéia de que esses são lugares
"fechados" — etnicamente puros, culturalmente tradicionais e
intocados até ontem pelas rupturas da modernidade — é uma fantasia ocidental
sobre a "alteridade": uma "fantasia colonial" sobre a
periferia, mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas
como "puros" e de seus lugares exóticos apenas como
"intocados". Entretanto, as evidências sugerem que a globalização
está tendo efeitos em toda parte, incluindo o Ocidente, e a
"periferia" também está vivendo seu efeito pluralizador, embora num
ritmo mais lento e desigual.
The Rest in the West (O Resto no Ocidente)
As páginas precedentes apresentaram três
qualificações relativamente à primeira das três possíveis conseqüências da
globalização, isto é, a homogeneização das identidades globais. Elas são:
a) globalização caminha em paralelo com um
reforçamento das identidades locais, embora isso ainda esteja dentro da lógica
da compressão espaço-tempo.
b) A globalização é um processo desigual e
tem sua própria "geometria de poder".
c) A globalização retém alguns aspectos da
dominação global ocidental, mas as identidades culturais estão, em toda parte, sendo
relativizadas pelo impacto da compressão espaço-tempo.
Talvez o exemplo mais impressionante desse
terceiro ponto seja o fenômeno da migração. Após a Segunda Guerra Mundial, as
potências européias descolonizadoras pensaram que podiam simplesmente cair fora
de suas esferas coloniais de influência, deixando as conseqüências do
imperialismo atrás delas. Mas a interdependência global agora atua em ambos os
sentidos. O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais
e de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme movimento de
pessoas das periferias para o centro, num dos períodos mais longos e
sustentados de migração "não-planejada" da história recente.
impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento
econômico e por colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos distúrbios políticos,
pelo conflito regional e pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela
dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais, as
pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na
"mensagem" do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm
os "bens" e onde as chances de sobrevivência são maiores. Na era das
comunicações globais, o Ocidente está situado apenas à distância de uma
passagem aérea.
Tem havido migrações contínuas e de grande
escala, legais e "ilegais", para os Estados Unidos, a partir de
muitos países pobres da América Latina e da bacia caribenha (Cuba, Haiti, Porto
Rico, República Dominicana, ilhas do Caribe Britânico), bem corno grande número
de "migrantes econômicos" e de refugiados políticos do Sudeste da Ásia
e do Extremo Oriente— chineses, coreanos, vietnamitas, cambojianos, indianos,
paquistaneses, japoneses. O Canadá tem uma substancial minoria de população
caribenha. Uma conseqüência disso é uma mudança dramática na "mistura
étnica" da população dos Estados Unidos — a primeira desde as migrações em
massa das primeiras décadas deste século. Em 1980, um em cada cinco americanos
tinha origem afro-americana, asiático americana ou indígena. Em 1990, essa
estatística era de um em cada quatro. Em muitas cidades grandes (incluindo Los
Angeles, San Francisco, Nova York, Chicago e Miami), os brancos são agora uma
minoria. Nos anos 80, a população da Califórnia cresceu em 5,6 milhões, 43 por
cento dos quais eram pessoas de cor — isto é, incluindo hispânicos e asiáticos,
bem como afro-americanos (comparados com 33 por cento em 1980) — e um quinto
tinha nascido no estrangeiro. Em 1995, previa-se que inn terço dos estudantes
das escolas públicas americanas seria constituído de "não-brancos"
(Censo dos Estados Unidos, 1991, citado em Platt, 1991).
Ao longo do mesmo período, houve urna
"migração" paralela de árabes do Maghreb (Marrocos, Argélia, Tunísia)
para a Europa, e de africanos do Senegal e do Zaire para a França e para a
Bélgica; de turcos e norte-africanos para a Alemanha; de asiáticos das Indias
Ocidentais e Orientais (ex-colônias holandesas) e do Suriname para a Holanda; de
norte-africanos para a Itália; e, obviamente, de pessoas do Caribe e da India,
Paquistão, Bangladesh, Quênia, Uganda e Sri Lanka para o Reino Unido. Há
refugiados politicos da Somália, Etiópia, Sudão e Sri Lanka e de outros
lugares, em pequenos números, em toda parte.
Esta formação de "enclaves"
étnicos minoritários no interior dos estados-nação do Ocidente levou a uma
"pluralização" de culturas nacionais e de identidades nacionais.
A dialética das identidades
Como esta situação tem se mostrado na Grã- Bretanha,
em termos de identidade? O primeiro efeito tem sido o de contestar os contornos
estabelecidos da identidade nacional e o de expor seu fechamento às pressões da
diferença, da "alteridade" e da diversidade cultural. Isto está
acontecendo, em diferentes graus, em todas as culturas nacionais ocidentais e,
como conseqüência, fez com que toda a questão da identidade nacional e da
"centralidade" cultural do Ocidente fosse abertamente discutida.
Num mundo de fronteiras dissolvidas e de
continuidades rompidas, as velhas certezas e hierarquias da identidade
britânica têm sido postas em questão. Num país que é agora um repositório de
culturas africanas e asiáticas, o sentimento do que significa ser britânico
nunca mais pode ter a mesma velha confiança e certeza. O que significa ser
europeu, num continente colorido não apenas pelas culturas de suas antigas
colônias, mas também pelas culturas americanas e agora pelas japonesas? A
categoria da identidade não é, ela própria, problemática? E possível, de algum
modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e
integral? A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela
imediatez e pela intensidade das confrontações culturais globais. Os confortos
da Tradição são fundamentalmente desafiados pelo imperativo de se forjar uma
nova auto-interpretação, baseada nas responsabilidades da Tradução cultural
(Robins, 1991, p. 41).
Outro efeito desse processo foi o de ter
provocado um alargamento do campo das identidades e uma proliferação de novas
posições-de-identidade, juntamente com um aumento de polarização entre elas.
Esses processos constituem a segunda e a terceira conseqüências possíveis da
globalização, anteriormente referidas — a possibilidade de que a globalização
possa levar a um fortalecimento de identidades locais ou à produção de novas
identidades.
O fortalecimento de identidades locais pode
ser visto na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos
dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas. No Reino
Unido, por exemplo, a atitude defensiva produziu uma "inglesidade"
(englishness) reformada, um "inglesismo" mesquinho e agressivo e um
recuo ao absolutismo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir
"uma identidade que seja una, unificada, e que filtre as ameaças da
experiência social" (Sennett, 1971, p.15). Isso freqüentemente está
baseado no que antes chamei de "racismo cultural" e é evidente,
atualmente, em partidos políticos legais, tanto de direita quanto de esquerda,
e em movimentos políticos mais extremistas em toda a Europa Ocidental.
Algumas vezes isso encontra uma
correspondência num recuo, entre as próprias comunidades comunitárias, a
identidades mais defensivas, em resposta à experiência de racismo cultural e de
exclusão. Tais estratégias incluem a re-identificação com as culturas de origem
(no Caribe, na Índia, em Bangladesh, no Paquistão); a construção de fortes
contra-etnias — como na identificação simbólica da segunda geração da juventude
afro-caribenha, através dos temas e motivos do rastafarianismo, com sua origem
e herança africana; ou o revival do tradicionalismo cultural, da
ortodoxia religiosa e do separatismo político, por exemplo, entre alguns
setores da comunidade islâmica.
Também há algumas evidências da terceira
conseqüência possível da globalização — a produção de novas identidades. Um bom
exemplo é, o das novas identidades que emergiram nos anos 70, agrupadas ao
redor do significante black, o qual, no contexto britânico, fornece um novo
foco de identificação tanto para as comunidades afrocaribenhas quanto para as
asiáticas. O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através
da apreensão da identidade black, não é que elas sejam, cultural, étnica,
lingüística ou mesmo fisicamente, a mesma coisa, mas que elas são vistas e
tratadas como "a mesma coisa" (isto é, não-brancas, como o
"outro") pela cultura dominante. E a sua exclusão que fornece aquilo
que Laclau e Mouffe chamam de "eixo comum de equivalência" dessa nova
identidade. Entretanto, apesar do fato de que esforços são feitos para dar a
essa identidade black um conteúdo único ou unificado, ela continua a
existir como uma identidade ao longo de uma larga gama de outras diferenças.
Pessoas afro-caribenhas e indianas continuam a manter diferentes tradições
culturais. O black é, assim, um exemplo não apenas do caráter político
das novas identidades isto é, de seu caráter posicional e conjuntural (sua
formação em e para tempos e lugares específicos) mas também do modo como a
identidade e a diferença estão inextrincavelmente articuladas ou entrelaçadas
em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra.
Como conclusão provisória, parece então que
a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades
centradas e "fechadas" de urna cultura nacional. Ela tem um efeito
pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e
novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais,
mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou
trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas
identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de "Tradição",
tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que
são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão
sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e,
assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou "puras"; e
essas, conseqüentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (seguindo Homi
Bhabha) chama de "Tradução".
O capítulo 6 descreverá, brevemente,
esse movimento contraditório entre Tradição e Tradução, num quadro mais amplo e
global, e perguntará o que isso nos diz sobre o modo como as identidades devem
ser conceptualizadas, em relação com os futuros da modernidade.
Naquilo que diz respeito às identidades,
essa oscilação entre Tradição e Tradução (que foi rapidamente descrita antes,
em relação à Grã- Bretanha) está se tornando mais evidente num quadro global.
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que
estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus
recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o
produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez
mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na
era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou
retornando a suas "raízes" ou desaparecendo através da assimilação e
da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema.
Pois há uma outra possibilidade: a da
Tradução. Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam
e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas
para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com
seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao
passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem
simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas
identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das
linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença
é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque
elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas
interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias "casas"
(e não a uma "casa" particular). As pessoas pertencentes a essas culturas
híbridas têm sitio obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de
redescobrir qualquer tipo de pureza cultural "perdida" ou de
absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra
"tradução", observa Salman Rushdie, "vem, etimologicamente, do
latim, significando "transferir"; "transportar entre
fronteiras". Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos
ao mesmo tempo, "tendo sido transportados através do mundo..., são homens
traduzidos" (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas diásporas
criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no
mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a
negociar entre elas As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de
identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia. Há muitos
outros exemplos a serem descobertos.
6. FUNDAMENTALISMO, DIASPORA E HIBRIDISMO
Algumas pessoas argumentam que o
"hibridismo" e o sincretismo — a fusão entre diferentes tradições
culturais — são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de
cultura, mais apropriadas à modernidade tardia que às velhas e contestadas
identidades do passado. Outras, entretanto, argumentam que o hibridismo, com a
indeterminação, a "dupla consciência" e o relativismo que implica,
também tem seus custos e perigos. O romance de Salman Rushdie sobre a migração,
o Islã e o profeta Maomé, Versos satânicos, com sua profunda imersão na cultura
islâmica e sua secular consciência de um "homem traduzido" e exilado,
ofendeu de tal forma os fundamentalistas iranianos que eles decretaram-lhe a
sentença de morte, acusando-o de blasfêmia. Também ofendeu muitos muçulmanos
britânicos. Ao defender seu romance, Rushdie apresentou uma defesa forte e
irresistível do "hibridismo":
No centro do romance está
um grupo de personagens, a maioria dos quais é constituída de muçulmanos
britânicos, ou de pessoas não particularmente religiosas, de origem islâmica,
lutando precisamente com o mesmo tipo de problemas que têm surgido em torno do
livro, problemas de hibridização e guetização, de reconciliar o velho com o
novo. Aquelas pessoas que se opõem violentamente ao romance, hoje, são de
opinião de que a mistura entre diferentes culturais inevitavelmente
enfraquecerá e destruirá sua própria cultura. Sou da opinião oposta. O livro
Versos satânicos celebra o hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação,
que vêm de novas e inesperadas combinações de seres humanos, culturas, idéias,
políticas, filmes, músicas. O livro alegra-se com os cruzamentos e teme o
absolutismo do Puro. Mélange, mistura, um pouco disso e um pouco
daquilo, é dessa forma que o novo entra no mando. E a grande
possibilidade que a migração de massa dá ao mundo, e eu tenho tentado
abraçá-la. O livro Versos satânicos é a favor da mudança-por-fusão, da
mudança-por-reunião. E uma canção de amor para nossos cruzados eus (Rushdie,
1991, p. 394).
Entretanto, o livro Versos satânicos
pode perfeitamente ter ficado preso entre as irreconciliáveis forças da
Tradição e da Tradução. Essa é a visão, simpática a Rushdie, mas também
crítica, de Bhiku Parekh (1989).
Por outro lado, existem também fortes
tentativas para se reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a
coesão, o "fechamento" e a Tradição, frente ao hibridismo e à
diversidade. Dois exemplos são o ressurgimento do nacionalismo na Europa
Oriental e o crescimento do fundamentalismo.
Numa era em que a integração regional nos
campos econômicos e políticos, e a dissolução da soberania nacional, estão
andando muito rapidamente na Europa Ocidental, o colapso dos regimes comunistas
na Europa Oriental e o colapso da antiga União Soviética foram seguidos por um
forte revival do nacionalismo étnico, alimentado por idéias tanto de
pureza racial quanto de ortodoxia religiosa. A ambição para criar novos e
unificados estados-nação (que, como sugeri acima, nunca realmente existiram nas
culturas nacionais ocidentais) tem sido a força impulsionadora por detrás de
movimentos separatistas nos estados bálticos da Estônia, Letônia e Lituânia, da
desintegração da Iugoslávia e do movimento de independência de muitas das
antigas repúblicas soviéticas (da Geórgia, Ucrânia, Rússia e Armênia até o
Curdistão, Usbequistão e as repúblicas asiáticas islâmicas do antigo estado
soviético). O mesmo processo, em grande parte, tem ocorrido nas
"nações" da Europa Central, que foram moldadas a partir da
desintegração dos impérios austro-húngaro e otomano, no foral da Primeira
Guerra Mundial.
Esses novos aspirantes ao status de
"nação" tentam construir estados que sejam unificados tanto em termos
étnicos quanto religiosos, e criar entidades políticas em torno de identidades
culturais homogêneas. O problema é que elas contêm, dentro de suas
"fronteiras", minorias que se identificam com culturas diferentes.
Assim, por exemplo, há minorias russas "étnicas" nas repúblicas
bálticas e na Ucrânia, poloneses étnicos na Lituânia, um enclave armênio
(Nagorno-Karabakh) no Adzerbajão, minorias turco-cristãs entre as maiorias
russas da Moldávia, e grande número de muçulmanos nas repúblicas sulistas da
antiga União Soviética, que partilham mais coisas, em termos culturais e
religiosos, com seus vizinhos islâmicos do Oriente Médio do que com muitos de
seus "conterrâneos".
A outra forma importante de revival do
nacionalismo particularista e do absolutismo étnico e religioso é, obviamente,
o fenômeno do "fundamentalismo" . Isto é evidente em toda parte (por
exemplo, no ressuscitado e mesquinho "inglesismo", anteriormente
mencionado), embora seu exemplo mais impressionante deva ser encontrado em
alguns estados islâmicos do Oriente Médio. Começando com a Revolução Iraniana,
têm surgido, em muitas sociedades até então seculares, movimentos islâmicos
fundamenta listas, que buscam criar estados religiosos nos quais os princípios
políticos de organização estejam alinhados com as doutrinas religiosas e com as
leis do Corão. Na verdade, esta tendência é difícil de ser interpretada. Alguns
analistas vêem-na como uma reação ao caráter "forçado" da
modernização ocidental: certamente, o fundamentalismo iraniano foi uma resposta
direta aos esforços do Xá nos anos 70 por adotar, de forma total, modelos e
valores culturais ocidentais. Alguns interpretam-no como uma resposta ao fato
de terem sido deixados fora da "globalização". A reafirmação de
"raízes" culturais e o retorno à ortodoxia têm sido, desde há muito,
uma das mais poderosas fontes de contra-identificação em muitas sociedades e
regiões pós-coloniais e do Terceiro Mundo (podemos pensar, aqui, nos papéis do
nacionalismo e da cultura nacional nos movimentos de independência indianos,
africanos e asiáticos). Outros vêem as raízes do fundamentalismo islâmico no
fracasso dos estados islâmicos em estabelecer lideranças
"modernizantes" bem-sucedidas e eficazes ou partidos modernos,
seculares. Em condições de extrema pobreza e relativo subdesenvolvimento
econômico (o fundamentalismo é mais forte nos estados islâmicos mais pobres da
região), a restauração da fé islâmica é uma poderosa força política e
ideológica mobilizadora e unificadora.
A tendência em direção à
"homogeneização global", pois, tem seu paralelo num poderoso revival
da "etnia", algumas vezes de variedades mais híbridas ou simbólicas,
mas também freqüentemente das variedades exclusivas ou
"essencialistas" mencionadas anteriormente. Bauman tem-se referido a
esse "ressurgimento da etnia" como uma das principais razões pelas
quais as versões mais extremas, desabridas ou
indeterminadas do que acontece com a
identidade sob o impacto do "pós-moderno global" exige uma séria
qualificação:
O "ressurgimento da
etnia"... traz para a linha de frente o florescimento não-antecipado de
lealdades étnicas no interior das minorias nacionais. Da mesma forma, ele
coloca em questão aquilo que parece ser a causa profunda do fenômeno: a
crescente separação entre o pertencimento ao corpo político e o pertencimento
étnico (ou mais geralmente, a conformidade cultural) que elimina grande parte
da atração original do programa de assimilação cultural... A etnia tem-se
tornado uma das muitas categorias, símbolos ou totens, em torno dos quais
comunidades flexíveis e livres de sanção são formadas e em relação as quais
identidades individuais são construídas e afirmadas. Existe agora, portanto, um
número muito menor daquelas forças centrifugas que unia vez enfraqueceram a integridade
étnica. Há, em vez disso, unia poderosa demanda por uma distintividade étnica
pronunciada (embora simbólica) e não por uma distintividade étnica
institucionalizada.
O ressurgimento do nacionalismo e de outras
formas de particularismo no final do século XX, ao lado da globalização e a ela
intimamente ligado, constitui, obviamente, urna reversão notável, uma virada
bastante inesperada dos acontecimentos. Nada nas perspectivas iluministas
modernizantes ou nas ideologias do Ocidente nem o liberalismo nem, na verdade,
o marxismo, que, apesar de toda sua oposição ao liberalismo, também viu o
capitalismo como o agente involuntário da "modernidade" previa um tal
resultado.
Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em
suas diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular
dariam gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas e
cosmopolitas ou internacionais; que o nacionalismo e a etnia eram formas
arcaicas de apego —a espécie de coisa que seria "dissolvida" pela
força revolucionadora da modernidade. De acordo com essas
"metanarrativas" da modernidade, os apegos irracionais ao local e ao
particular, à tradição e às raízes, aos mitos nacionais e às "comunidades
imaginadas", seriam gradualmente substituídos por identidades mais
racionais e universalistas. Entretanto, a globalização não parece estar
produzindo nem o triunfo do "global" nem a persistência, em sua velha
forma nacionalista, do "local". Os deslocamentos ou os desvios da
globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que
sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere
que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode
acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do
Ocidente.
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