Os protestos no Brasil e no mundo
Os protestos no Brasil e no mundo
O movimento iniciou-se por conta do aumento tarifário, mas
acabou ganhando proporções muito maiores e desenvolveu-se de uma maneira que,
talvez, ainda não consigamos entender plenamente. Certos fatos só são
totalmente compreensíveis com algum distanciamento no tempo. Longa duração…
De início as manifestações foram rotuladas de “revolta de
jovens sem causa”, burguesas” e outros adjetivos que a mídia conservadora
espalhou aos quatro ventos, ao argumentar que quem tem IPhone pode pagar os
R$0,20, ou que esta quantia não faz diferença. Tais argumentos são facilmente
derrubáveis.
Em primeiro lugar, R$0,20 em cada jornada fazem sim
diferença. Um trabalhador que use 4 conduções ao dia, gastará R$0,80. Se for,
por exemplo, um casal, essa quantia dobra. Considerando que um quilo de pão
custa algo como R$6,00 em uma padaria simples como as das nossas periferias (não
uma padaria-boutique), vê-se que os tais R$0,20 tão insignificantes somam algo
como quatro ou seis pães/dia. Só alguém mal informado ou mal intencionado pode
dizer que isso não faz diferença para um país com a nossa realidade.
Em segundo lugar, ter ou não as condições de pagar pelo
aumento não quer dizer que sejamos obrigados a aceitar. Este raciocínio é tão
raso quanto argumentar então que quem tem dinheiro para pagar uma faculdade
particular não deve fazer uma pública, ou ao menos não deve reclamar de sua
qualidade ou de suas condições. Ou ainda, que brasileiros ricos que podem se
mudar para o exterior não podem reclamar da bandalheira que aqui ocorre.
Obviamente, o argumento não procede. Existe algo chamado SOCIEDADE e CIDADANIA.
Se a sua sociedade tem um problema, você tem um problema. Pensar no conjunto,
pensar no todo, é direito e dever de todo cidadão. Lutar pelo bem comum,
também.
O ponto essencial, no entanto, não é esse. É público e
notório que o Brasil tem problemas em grande quantidade. É fato, também, que o
acúmulo desses problemas somados ao descaso do Estado (e causados por ele),
chegou a um ponto extremo. Em um país que ainda tem milhões de pessoas abaixo
da linha da pobreza, gasta-se fortunas em estádios e salários de políticos que
são exorbitantes. Falta infra-estrutura, falta transparência, falta
investimento.
Em paralelo, estamos vivendo um momento histórico em escala
global: as mídias sociais democratizaram o aceso à informação de uma forma
realmente revolucionária. Protestar em grande escala hoje é barato e é
possível, contornando o monopólio da informação exercido pelos grandes grupos
de mídia. Hoje, o cidadão comum pode se manifestar para o mundo de dentro da
sua casa. Esta mudança fundamental nas comunicações humanas ainda não foi compreendida
em sua totalidade, nem por governos, nem pela população, mas é uma poderosa
arma popular.
Olhemos em volta. Será realmente possível dizer que a
“Revolução de Jasmim”, nome dado ao levante na Tunísia em dezembro de 2010,
centelha criadora da “Primavera Árabe”, realmente começou porque o jovem
Mohamed Bouazizi se suicidou? Será que a Praça Tahrir, no Egito, foi apenas uma
movimentação detonada pela revolta tunisiana? Os “indignados” da Espanha, foram
às ruas apenas porque tunisianos e egípcios o fizeram? E assim, por excesso de
tempo livre e nada para fazer, teriam explodido os movimentos “Occupy” em
escala global e “99%” nos EUA? E, por fim, os manifestantes turcos da Praça
Taksim estariam realmente protestando apenas por conta da derrubada de algumas
árvores e da destruição de um parque, uma área verde?
No caso dos movimentos “Occupy” e “99%”, muito se falou
sobre a suposta falta de objetivos e metas. De fato, a pauta de reivindicações
era difusa, mas isso não diminui a validade do protesto e demonstra que, de
fato, a frustração é geral. A falta de um “alvo claro” não é falta de
propósito, é sinal da falência do sistema em ampla escala e diversos campos. O
Brasil insere-se, assim, em um contexto muito maior, latente há anos e
radicalizado por conta da crise econômica iniciada em 2008.
Será tão difícil para os “analistas” e “especialistas”
perceberem isso?
Movimentos são exatamente isso: movimentos. São dinâmicos.
Iniciam-se tendo como fagulha um evento em especial, mas simbolizam muito mais
do que a alegada causa original. Simbolizam o cansaço que existe em qualquer
sociedade em que a política passou a atender interesses que são tudo, menos os
anseios populares. Quando esses governos são pródigos nos gastos e corruptos e
ineficientes, o cenário está montado. No caso dos atuais movimentos surge ainda
outra questão: por serem eventos espontâneos criados por uma situação de
saturação, não há líderes claros, não há hierarquia. O poder público é
hierárquico e só consegue se relacionar com poderes deste mesmo tipo. Não sabe
lidar com os movimentos desse novo tipo.
No mais, os governadores de Rio e São Paulo argumentaram,
semana passada, que os protestos tem um fundo político, como se houvesse uma
conspiração contra eles. Mas que manifestação contra a incompetência do Estado
não é política? É e tem que ser política, política se faz todo dia, democracia
não é votar a cada quatro anos.
No Brasil, o movimento está longe de ser unicamente
paulista. Porto Alegre, Fortaleza, Rio de Janeiro e muitas outras capitais e
grandes centros do interior estão se levantando, com maior ou menor cobertura
midiática. E mais, estão se apoiando, como no caso de uma passeata carioca em
que o povo gritava: “São Paulo, São Paulo, não para de lutar!”. Em cada cidade
a crítica é a um ponto específico: a tarifa do transporte público, o gasto
excessivo coma construção do Estádio
Mané Garrincha em Brasilia. Sintomaticamente, o estádio brasiliense é o mais
caro entre todos os que estão sendo construídos ou reformados para a Copa. O
povo foi às ruas. Ainda que sejam questões locais, o pano de fundo é o mesmo:
ineficiência dos poderes públicos, acúmulo de frustrações, corrupção e
desigualdade.
O que os novos movimentos mostram no Brasil é o que já foi
visto também em outros países: uma nova forma de protesto que renega o espaço
institucional tradicional, visto como falido. O diálogo não será nos
escritórios ou gabinetes, será nas ruas. Além disso, grupos sociais antes
separados, agora estão juntos. Quem foi a uma das manifestações viu isso com os
próprios olhos. Viu também que o movimento é pacífico e que os “vândalos” são
minoria absoluta, ou ainda que o ataque em alguns casos partiu da polícia. Uma
nova forma de se organizar surgiu: alunos de medicina prestando atendimento nas
passeatas, alunos de direito defendendo habeas corpus aos manifestantes presos,
pessoas das sacadas de seus apartamentos registrando a violência policial e
disponibilizando os vídeos na internet, ou jogando garrafas de vinagre para os
manifestantes.
Não há comparação direta entre o que acontece no Brasil e no
Egito, por exemplo. Lá vivia-se uma ditadura, aqui não. Porém, a violência das
nossas polícias fez muito para reduzir esta distância. Graças à ação policial e
ao ataque direto à mídia e pessoas comuns, as manifestações aumentaram, ao
invés de diminuir. Medidas ridículas como a proibição da circulação do vinagre
só serviram para gerar mais piadas na internet e mostrar o quanto as
autoridades estão perdidas, atarantadas. “V de Vinagre” foi a bem-humorada
resposta dos manifestantes.
Por fim, é importante manter a vigilância. Há uma tentativa
dos partidos políticos de transformar as manifestações em uma questão
partidária, e este é um risco a respeito do qual é essencial manter-se alerta.
Não se trata aqui de criticar apenas um partido ou uma pessoa, já que os
problemas que geraram a crise são antigos e de responsabilidade de toda a
camada política, não apenas dos últimos governos. Isso não é, de forma alguma,
uma defesa dos governos que aí estão e de seus partidos, já que eles são
culpados também. É um alerta. É fundamental que as manifestações continuem
sendo espontâneas para que não haja um “sequestro” do movimento para ajudar a
servir causas partidárias. Caso contrário, o oportunismo histórico dos nossos
partidos canalizará essa força de acordo com seus interesses. Note-se: em 2014
haverá eleições federais e estaduais. Não sejamos ingênuos: os rumos desses
movimentos e seus desdobramentos serão peça-chave no cálculo político para
definir o cenário político no ano que vem, as ações tomadas hoje terão reflexos
eleitorais e podem mudar a relação de forças. Por isso, novamente, é
fundamental impedir a partidarização dos movimentos. Isso não significa, como
pedem alguns, lutar pela extinção dos partidos. Trata-se apenas, insisto, de
impedir que o movimento seja tomado por apenas uma linha política seguidora de
um partido em particular.
Sob qualquer perspectiva, vivemos dias históricos. Lima
Barreto, em frase famosa, afirmou: “O Brasil não tem povo, tem público”. Talvez
estejamos começando a nos livrar dessa sentença.
Aos que argumentam que tudo isso não levará a nada, uma
última opinião: talvez o efeito imediato seja menor do que o esperado. É,
aliás, bem possível. Tarifas podem se manter, nada mudará da água pro vinho ou
do dia para a noite. E isso não é uma visão derrotista. Apesar das mudanças na
superfície serem eventualmente pequenas, que não reste dúvida: a relação
estrutural entre povo e poder público mudou. Qualquer agente estatal ou
político com o mínimo de inteligência já percebeu que nunca mais as coisas
serão como antes. Uma vez desperto, o povo ganha confiança. Manifestações
contra desmandos e corrupção continuarão ocorrendo, as forças serão obrigadas a
se repensar e reorganizar. As coisas já mudaram, tenham certeza. Talvez a
mudança seja pequena quando vista de perto, mas é estrutural e veio para ficar.
Frase que circulou pela internet, cuja autoria infelizmente
desconheço: “Não somos apenas os filhos da democracia, somos também os pais da
próxima revolução”.
Postado por Daniel em 17/06/2013
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